A Copa João Havelange de 2000 é um marco singular no futebol brasileiro. Fruto de uma crise judicial que paralisou a CBF, o torneio foi organizado pelo Clube dos 13 e reuniu impressionantes 116 clubes em um formato caótico e imprevisível. Marcado por zebras como o São Caetano, polêmicas envolvendo Eurico Miranda e um título dramático do Vasco da Gama, o campeonato entrou para a história com histórias surpreendentes — do colapso do alambrado em São Januário à transmissão inédita pelo SBT.

O Contexto Histórico: Uma Crise que Redefiniu o Futebol Brasileiro

O Escândalo Sandro Hiroshi: Como Tudo Começou

A origem da Copa João Havelange remonta a 4 de agosto de 1999, quando o São Paulo goleou o Botafogo por 6 a 1 no Morumbi, pelo Brasileirão. O atacante Sandro Hiroshi, escalado pelo São Paulo, tinha documentação adulterada (idade falsificada), o que levou o Botafogo a recorrer ao STJD. Em outubro, o tribunal anulou o jogo, concedendo os pontos ao Botafogo, que escapou do rebaixamento. O Gama, rebaixado por média de pontos (1998-1999), entrou na Justiça Comum contra a CBF em novembro de 1999. Em março de 2000, a justiça proibiu a CBF de organizar o Brasileirão, transferindo a responsabilidade ao Clube dos 13.

O Clube dos 13 Assume o Controle

Formado por gigantes como Vasco, Flamengo e Corinthians, o Clube dos 13 viu na crise uma chance de liderar o futebol nacional. Para evitar mais liminares judiciais de clubes rebaixados, como o Gama, decidiu criar um torneio inclusivo, unindo Série A, B e C em uma única competição. Batizado em homenagem a João Havelange, ex-presidente da FIFA, o campeonato foi anunciado em maio de 2000 como uma solução emergencial — e controversa.

O Formato Caótico: 114 Times em Quatro Módulos

Estrutura do Torneio: Uma Visão Geral

A Copa João Havelange teve 114 participantes divididos em quatro módulos:

  • Módulo Azul: 25 clubes (12 classificados para o mata-mata).

  • Módulo Amarelo: 36 clubes (3 classificados).

  • Módulos Verde e Branco: 53 clubes (1 classificado).

Após a fase de grupos, 16 times avançaram aos mata-matas, com critérios como pontos, vitórias e saldo de gols definindo os classificados.

Módulo Azul: Elite e Polêmica
O Módulo Azul incluiu 18 times da Série A de 1999, dois promovidos (Goiás e Santa Cruz) e cinco “convidados”: Gama (por liminar), Fluminense (campeão da Série C), Bahia (3º na Série B), América-MG e Juventude (rebaixados em 1999). O Cruzeiro liderou a fase de grupos, mas o Vasco avançou nos mata-matas até o título. As “viradas de mesa” geraram acusações de favorecimento.

Módulo Amarelo: O Palco das Surpresas
Com 36 equipes da Série B, o Módulo Amarelo revelou o São Caetano como protagonista. Clubes como Remo e Paraná também brilharam, mas nenhum igualou a campanha histórica do “Azulão”, que chegou à final.

Módulos Verde e Branco: O Futebol Raiz
Os 53 times dos Módulos Verde e Branco, como Genus (RO), Camaçari (BA) e Rio Negro (AM), representaram o interior. Apenas o Bangu avançou, mas caiu nas oitavas, destacando a disparidade com os grandes.

São Caetano: O Conto da Zebra que Quase Virou Rei

Uma Ascensão Improvável
Fundado em 4 de dezembro de 1989, o São Caetano era um desconhecido nacional. No Módulo Amarelo, liderou sua chave e, nos mata-matas, eliminou Fluminense (3 a 0), Palmeiras (2 a 1 e 2 a 2) e Grêmio (3 a 2). “Foi um sonho que virou realidade”, disse o atacante Adhemar anos depois.

A Final Contra o Vasco
Em 27 de dezembro de 2000, no Palestra Itália, São Caetano e Vasco empataram em 1 a 1 (Adhemar e Romário marcaram). A decisão ficou para 2001, após o drama de São Januário, com o Vasco vencendo por 3 a 1. O vice não diminuiu o feito: em 2001, o “Azulão” chegaria à final da Libertadores.

O Drama de São Januário: Tragédia e Triunfo

O Colapso do Alambrado
Em 30 de dezembro de 2000, São Januário recebeu cerca de 32 mil torcedores — acima da capacidade oficial. Antes do intervalo, com o placar em 0 a 0, o alambrado cedeu, ferindo entre 150 e 200 pessoas segundo estimativas, (algumas fontes apontam 168 feridos oficiais). A partida foi suspensa, e imagens do caos circularam pelo mundo.

A Final no Maracanã
Eurico Miranda, presidente do Vasco, acusou a Globo de sensacionalismo e fechou com o SBT para transmitir o jogo decisivo em 18 de janeiro de 2001, no Maracanã. Com 66 mil presentes, o Vasco venceu por 3 a 1 (gols de Juninho Pernambucano, Jorginho Paulista e Romário), conquistando o título.

Impacto: O incidente expôs a precariedade dos estádios brasileiros, influenciando debates que culminaram na Lei do Torcedor em 2003.

Eurico Miranda: O Dirigente Autoritário

Eurico Miranda era uma figura centralizadora no Vasco. Sua decisão de romper com a Globo e negociar com o SBT refletiu anos de atritos com a emissora e a CBF. “Eurico mandava e desmandava”, lembrou o jornalista Milton Neves.

A Demissão de Oswaldo de Oliveira
Oswaldo de Oliveira levou o Vasco às semifinais, mas foi demitido em dezembro de 2000 após abraçar Felipão, técnico do Cruzeiro e desafeto de Eurico, antes de um jogo. Joel Santana assumiu e venceu a final, mas a troca revelou o temperamento explosivo do dirigente.

O Quarteto Fantástico do Vasco
Romário, Juninho Pernambucano, Juninho Paulista e Euller formaram um ataque avassalador. Romário, com cerca de 20 gols (disputando a artilharia com Magno Alves, do Fluminense), foi o destaque.

Curiosidades que Marcam a Copa João Havelange

  • Times Obscuros: Genus (RO), Camaçari (BA) e Rio Negro (AM) jogaram, mas desapareceram da memória.

  • Interferência da FIFA: A FIFA baniu o Gama por ação judicial, mas recuou após pressão.

  • SBT na Final: A transmissão pelo SBT quebrou o monopólio da Globo.

  • Maior Público: 66 mil pessoas lotaram o Maracanã na final.

  • Artilharia: Magno Alves e Romário disputaram o topo, ambos com cerca de 20 gols.

  • Virada de Mesa: Fluminense subiu da Série C para a elite sem mérito técnico.

O Legado: Do Caos à Ordem

Desorganização em Foco
Com 16 campeões em 45 edições do Brasileirão até 2000, o torneio expôs a imprevisibilidade e a bagunça administrativa do futebol brasileiro.

Rumo aos Pontos Corridos
A Copa João Havelange foi o último experimento caótico, pavimentando o caminho para os pontos corridos em 2003, que trouxeram estabilidade.

Impacto Cultural da Copa João Havelange
O torneio inspirou documentários e nostalgia, com histórias como a de São Caetano e o drama de São Januário virando folclore.

Por que a Copa João Havelange Ainda Fascina?

A Copa João Havelange foi um torneio único e caótico, que mesclou emoção, polêmicas e inovação. O brilho do Vasco, a incrível jornada do São Caetano e o impacto do torneio no futebol brasileiro fazem com que a competição seja lembrada até hoje.

“Foi um assombro”, disse Euller, o “Filho do Vento”. Do brilho do Vasco à quase glória do São Caetano, o torneio de 2000 reflete a paixão e a loucura do futebol brasileiro.

Mesmo com todas as suas falhas, a Copa João Havelange marcou a transição do futebol brasileiro rumo à modernização, consolidando-se como um dos torneios mais memoráveis da história do esporte nacional.